Menina

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Às vezes, sinto falta das minhas amizades de menina.

Das amigas que diziam com os olhos, os segredos bobos, das confidências, das risadas, dos abraços. Sinto falta das amigas que dormiam na minha casa, que conhecia todas as suas expressões. Que nunca me abandonava. Me conhecia.

Sinto falta das brincadeiras, das músicas, do colégio. Andávamos no sol a tarde toda uma ao lado da outra sem reclamar. Depois da igreja, pracinha. Combinávamos as roupas. Sinto falta até das brigas de 10 segundos. Era impossível ficar sem falar.

Hoje me vejo em diferentes lugares, com diferentes pessoas que não sei como lidar. As amizades são rápidas. Viram as costas. Apenas vão. Não era habituada com isso até me conformar. Nada mais será como antes. As pessoas não se entregam mais. E aprendi a ser assim também. Não existe mais cumplicidade.
No inicio, até me machucava. Hoje, tanto faz. Se elas me dão as costas... não posso fazer nada mais. Mas ainda me pergunto se um dia encontrarei dentro de alguém um amigo que me dará seu ombro sem perguntar por que choro, um amigo que compartilhe comigo seus problemas, que tiremos juntos nossas dúvidas. Que me abrace. Como sinto falta de um abraço. Os abraços sem sentimento me entristecem, evito.

Não espero mais das pessoas, não me iludo, não me encanto. O maior erro que se pode cometer é esperar algo de alguém que não se conhece. Não podemos obrigar as pessoas a corresponder as nossas fantasiosas expectativas. As conheço sem pretensões, assim não corro o risco de enganos e frustrações. Algumas me surpreendem, duram um tempo, mas, no fundo, sei que... não serão compreensivos comigo. Na primeira mancada que der, irão sem nem ao menos pesar a amizade.

Afinal, percebo o quão boba pareço ser. Esperar que alguém disponibilize seu tempo para apenas ficar ao meu lado em silêncio. Que sinta minha falta. Mas sei que mesmo as pessoas mais duras sentem falta disso, só não tem coragem de falar, ou se conformam com as “amizades” que possuem. Prefiro carregar em mim, pelo menos um pouco, da minha menina. Já está um pouco cansada, chora, não quer ficar sozinha. Contudo, sei que ela nunca me deixará. Espera comigo. Apenas espera.

Programa de domingo

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- Shhhhhh, o programa começou!

Era assim que sempre interrompia as conversas que surgiam nos poucos minutos de comercial. Não sei como elas se concentravam tão rápido nas conversas que nem escutavam a chamada do programa. Mas eu, eu não! Não despregava o olho um minuto sequer da tela.

Não perdia nenhum domingo. O apresentador é engajado, sabe descontrair e chamar a atenção mesmo com seus quadros, às vezes idiotas e infantis, às vezes sérios e apelativos, mas que toda a família assistia sem reclamar.

Um apresentador do tipo chato com irritante, mas, que mesmo assim conseguia cativar e não muito, fazer até as pessoas esquecerem seus tão surrados problemas.

- Não sei o que essa menina vê tanto nesse programa! – reclamava minha mãe com cara de indignação e curiosidade.

- Ué, as mesmas coisas que a senhora... Reclama tanto e fica aí assistindo! - eu respondia sempre com respostas pertinentes. Não sei como não apanhei até hoje...

- Ah, você me paga, sua moleca mal criada! – ameaçava.

- Você que me criou...! – bico.

- Quietem vocês duas! Não estou escutando nada! – esbravejava a vovó da cadeira de encosto.

E, ao fundo do panavuê, podia-se ainda escutar... “Com vocês... a mais célebre atriz de todos os tempos da TV brasileira...”. Então, todo mundo parava, e como se entrasse em um transe profundo, tudo já era silêncio e estávamos todas embebidas pela programação, que ao mesmo tempo divertia e entediava.

Como não tinha mais nada pra fazer, era assim que os meus domingos se arrastavam: eu, minha mãe, vovó e o insuportável-adorável apresentador, dividindo o mesmo espaço.

Comercial.

- Pois é, menina! Não sabia que ela tinha feito isso! – ressalta minha mãe, desenterrando uma conversa que eu jurava ter sufocado há 10 minutos, nem parece que houve interrupção!

- Aiai, se uma filha minha ousasse fazer uma malineza dessa! Ou uma NETA... – rabo de olho para mim (não sei por quê!) – Ainda bem que aqui em casa tem cipó! – não sei pra quê essas ameaças... Desde pequena, quando ainda sentia medo, percebi que eram falsas, mas por via das dúvidas, prefiro fingir não saber que são.

Ufa! Salva pelo gongo:

- Shhhhhh, o programa começou! – berro.



Panorama

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Não há muito o que se fazer, quando se espera por 4h o ônibus na rodoviária.


Comecei a ler um livro que já tinha lido, estudar, escutar música.

Hoje ainda naão fiz amizades com estranhos.

"Passa o olho nele, por favor?". Pedem pra eu olhar malas e crianças, ou será a mesma coisa...? Reflito.

Que vontade de roubar a jujubinha desse menino, que estou "passando olho". Tão fácil como roubar doce de uma criança. Se fizer isso, no mínimo haverá um escândalo e gritarias.

Um cara aqui perto finge estar refletindo. Duvido. Deve ta pensando putaria. Ou não.

Uma placa indica pra baixo um caixa eletrônico que não existe.

A placa do banco diz: Proibido deitar e pisar. Estou pisando e deitando no banco. Me sinto uma vândala.

Tem também placas de guarda-volume e policiais que não existem. Não aqui.

Aqui há gente de todo tipo, como em qualquer lugar. Mas é estranho ter tempo para analisá-las. O cara puto-reflexivo roe unhas.

Ainda não estou entediada no nível complexo-vomitar.

Será que só eu tenho medo de ficar com dor de barriga no ônibus? Não... acho que não.

Olha só, o puto-reflexivo tá com a camisa do Vitória.

Comi um croissant. Aff, nunca tinha comido isso. Só o fiz por causa da música Burguesinha de Seu Jorge. Aqui tava mais pra Proletariazinha.

Não creio. Acabo de ver um conhecido. Assim, conheço de vista, da facul. Vou me camuflar. Odeio falar com pseudo-conhecidos e ser reconhecida.

No banheiro tem um cartaz: Elas também fazem em pé. WTF??? Duvido que uma mulher com sua sanidade mental normal faça aquilo. Não vou nem explicar o processo. Constrangedor.

Aqui tem clones de várias pessoas conhecidas.

Minha poltrona é uma das últimas. Odeio quando isso acontece.

Mas é por uma causa nobre. Enfim, detesto ficar perto do banheiro. Tomara que aquela porra química esteja decente. E que seja pouco frequentado.

E tomara que não esteja passando Badalações de um sábado ou Procurando Nemo. Nunca trocam esses filmes, decorei as falas.

Sinto pessoas olhando como se quisessem um Oi. Abaixo a cabeça. Estamos todos sozinhos, no final das contas.

Tomara que o nº 39 não vá.
 

Ana

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Ana Maria é inconformada, coitada. Quer ser amada.

Coitada.

Mora sozinha. Não cria nem um gato. Tem apenas um sapato.

Ana não usa salto. Usa saia.

Saia de bico. Rendada.

Com blusa de crochê.

E bolsinha feita de lacre vermelho de coca cola.

No prédio de Ana não tem elevador. Tem escada.

Na verdade, Ana queria ter um ar condicionado, mas só tem um ventilador.

Ana sente dor.

Não toma remédios.

Toma...ra que ela se enamore. Que more.

Ana pensa seriamente em comprar maquiagens, mas tem vergonha da vendedora.

Contenta-se com o batom rosa bebê dado por sua avó aos quinze anos.

O usa raramente.

Ana gosta de TV. Não de filme de terror.

Tem temor de ficar só.

Mas é como sempre fica.

Ana tem um lençol. Escrito em japonês. Não sabe o que diz, mas acha bonito. É preto e vermelho, mesmo não gostando muito de vermelho.

O seu aniversário é em maio. Da última vez, ganhou um maiô. Está guardado. Deve ter pegado até um bolô. Ana não vai à praia.

Ana tem alergias.

Seu lenço é da Turma da Mônica. Sente-se feliz com ele. Usa-o desde a sua infância, tem valor emocional.

Ana não tem mais bicicletas, e seu patins não entra mais no seu pé.

Ana gosta de lavar roupas, mesmo que as de crochê dêem um pouco de trabalho.

Mas o que Ana queria mesmo... era lavar alma.